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Ficção fantástica decola e ganha altura, defende escritor

Samir Machado de Machado rebate argumento de Santiago Nazarian sobre limites da chamada literatura de gênero no Brasil

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Samir Machado de Machado

Publicado no dia 29,  o artigo do escritor e tradutor Santiago Nazarian levantou um debate acalorado entre autores e leitores do que se convencionou chamar, de modo generalizante, de “literatura de gênero” —fantasia, ficção científica e horror. 

Nazarian acredita que, apesar do destaque pelo qual passa essa literatura hoje, a sensação de “agora vai” já teria ocorrido antes, com resultados frustrantes. E questiona o próprio papel que essa literatura ocupa no momento atual, em que a realidade do país se encontra presa a um cenário de crise política e de identidade.

Por trás de seu questionamento, há uma dúvida genuína que percorre a cabeça de todo escritor: o que escrevo é relevante, se comparado à realidade atual? Se faço literatura de gênero, que importância pode ter escrever sobre coisas que não existem ou não aconteceram, numa realidade concreta que se mostra a cada dia mais tensa e autoritária?

Personagens mortos-vivos da minissérie “Incidente em Antares”, exibida em 1994 pela Globo, inspirada no romance homônimo de Erico Verissimo 
Personagens mortos-vivos da minissérie “Incidente em Antares”, exibida em 1994 pela Globo, inspirada no romance homônimo de Erico Verissimo  - Divulgação

A resposta está no leitor. Uma olhada na lista de livros mais vendidos aponta: quase todos se encaixam em categorias de gênero, com especial destaque para as distopias “1984”, “Fahrenheit 451” e  “O Conto da Aia”. O fato é que, neste momento turbulento para o país, o leitor se volta cada vez mais para a literatura de imaginação.

Dirão que é escapismo. Discordo. O que vejo é um esgotamento da literatura realista em explicar tempos cada vez mais surreais. Se fosse literatura, a simples transcrição deste ano de 2019 seria considerada inverossímil, ou um original perdido de Philip K. Dick. E quando a literatura dita realista atinge seu limite, é a literatura de gênero que, livre de amarras, vai fornecer o subtexto, as metáforas e interpretações que nos permitirão compreender o que está acontecendo.

Foi no auge da repressão do governo Médici, afinal, que Erico Verissimo fez os mortos voltarem à vida e apontarem a hipocrisia da sociedade no romance “Incidente em Antares” (1971) —o primeiro livro de zumbis da literatura brasileira. E como bem lembrou Aline Valek, autora da ficção científica “As Águas-Vivas não Sabem de Si” (2016), “há povo com mais vocação para o fantástico do que aquele que precisa se inventar todos os dias?”.

Nazarian, autor do excelente terror sobrenatural “Neve Negra” (2017), desconfia dessa impressão de sucesso comercial. Mas há boa e má literatura que vendem, e boa e má literatura que não vendem, e isso pode ser aplicado a qualquer tipo de literatura. Depende muito mais de esforços de marketing do que de qualidade.

O fantástico na literatura brasileira percorre as obras de Machado de Assis, Graciliano Ramos, Lygia Fagundes Telles, J. J. Veiga e vários outros. A construção desse histórico passa pelo meio acadêmico, ambiente em que há esnobismos e elitismos, mas que se abre cada vez mais ao estudo do fantástico em geral, e do nacional em específico.

Todo ano, mais de 400 pesquisadores se reúnem num congresso na UERJ para discutir literatura fantástica —neste momento, há núcleos de pesquisa voltados ao tema em diversas universidades, como USP, UFSM, UFPE, UFMS e UFPB. Eu mesmo participo de um na PUC-RS.

Entendo o que leva Nazarian a desconfiar dessa sensação de “agora vai” que tantas vezes frustrou gerações de escritores anteriores. Mas isso parte de uma premissa equivocada: a de que tenha havido de fato, antes dos anos 2010, um momento realmente forte de literatura fantástica brasileira.

Não digo isso por demérito a autores de gerações anteriores. Apesar de diversos esforços em décadas passadas, de alcance regional e geralmente concentrados no sudeste, não se pode falar num “momento” da literatura fantástica brasileira, em termos nacionais, antes dos anos 2010, quando tanto a consolidação da cultura pop, nerd e geek, quanto das redes sociais, dos meios de autopublicação e da explosão de editoras independentes permitiram que leitores de regiões de um extremo do país encontrassem leitores na outra ponta. 

Romperam-se limitações impostas por geografia, distribuição ou a limitação de espaço para se discutir literatura na imprensa.

Foi essa fusão de fatores que permitiu ao baiano Ian Fraser, sem apoio de grandes editoras, fazer seu épico de fantasia indígena “Araruama” (2017), um dos projetos de maior arrecadação na plataforma de autofinanciamento Catarse; ou que a fantasia distópica “A Ordem Vermelha” (2017), de Felipe Castilho, vendesse mais de 30 mil exemplares. Já livros como o terror psicológico “As Perguntas”, de Antônio Xerxenesky, podem até vender menos, mas acaba de ser publicado na França e no Egito.

Dirão que tudo isso é literatura de entretenimento, o que faria dela algo descartável e passageiro —como se a própria literatura brasileira não tivesse nascido de folhetins. E é bom lembrar que mesmo Shakespeare, afinal, era entretenimento: disputava público com as rinhas de cães do outro lado da rua. 

E se a definição de uma identidade nacional surge das histórias que compartilhamos e temos em comum, nada a define (e redefine) mais do que sua literatura nacional de entretenimento.


Samir Machado de Machado é escritor e tradutor, autor de “Tupinilândia” (Todavia)

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